Anexo 2 - Jacob e Esaú

“No primeiro dos livros da Bíblia, o Génesis, conta-se a história de Esaú e Jacob, filhos de Isaac. Eram irmãos gémeos, mas Esaú fora o primeiro a sair do ventre da mãe, o que lhe concedia o direito de primogenitura: ser primogénito naqueles tempos não era coisa de somenos importância, porque significava a sorte de se herdarem as posses e privilégios do pai. Esaú gostava de ir à caça e de andar em busca de aventuras, enquanto Jacob preferia ficar em casa, confeccionando de quando em vez algumas delícias culinárias. Um dia, Esaú voltou do campo cansado e faminto. Jacob preparara um suculento guisado de lentilhas, e o irmão, só de sentir o aroma do cozinhado, ficou cheio de água na boca. Apeteceu-lhe intensamente comer aquele prato e pediu a Jacob que o convidasse. O irmão cozinheiro disse-lhe que o faria com muito gosto, mas não grátis, mas, antes, em troca do direito de primogenitura. Esaú pensou: “Agora o que me apetece são as lentilhas. A herança do meu pai é para daqui a muito tempo. Quem sabe? Talvez eu morra até antes dele!” E acedeu a trocar os seus futuros direitos de primogénito pelas saborosas lentilhas do presente. Deviam ter um cheiro esplêndido aquelas lentilhas! Não é preciso dizer-te que mais tarde, com a pança já cheia, Esaú se arrependeu do mau negócio que tinha feito, o que provocou bastantes problemas entre os dois irmãos (deixa-me confessar-te com o devido respeito que sempre tive a impressão de que Jacob era um pássaro de alto lá com ele). Mas se queres saber como acaba a história, podes ler o Génesis. Para o que aqui nos interessa exemplificar, basta o que te contei.”
(Ética para um Jovem; Fernando Savater; Editorial Presença; pp. 54)



“Nós, seres humanos, queremos às vezes coisas contraditórias, que entram em conflito umas com as outras. É importante sermos capazes de estabelecer prioridades e de impor uma certa hierarquia entre o que me apetece no imediato e aquilo que, no fundo, a longo prazo, quero. Quem o não perceber à primeira, pode perguntar a Esaú...
Nesta história da Bíblia há um pormenor importante. O que determina Esaú a escolher o guisado presente e a renunciar à herança futura é a sombra da morte ou, se preferes, o desânimo produzido pela brevidade da vida. “Como sei que vou morrer seja como for e talvez antes do meu pai... para que me incomodarei a dar voltas para descobrir o que me convém? Agora quero as lentilhas e amanhã estarei morto, de modo que venham as lentilhas e acabou-se!” é como se a certeza da morte levasse Esaú a pensar que a vida já não vale a pena, que tudo vem a dar no mesmo. Mas o que faz com que tudo venha a dar no mesmo não é a vida, mas a morte. Repara: por medo da morte, Esaú decide viver como se já estivesse morto e tudo fosse a mesma coisa. A vida é feita de tempo, o nosso presente está cheio de recordações e esperanças, mas Esaú vive como se para ele já não houvesse outra realidade a não ser o aroma das lentilhas que lhe chega agora mesmo ao nariz, sem ontem nem amanhã. Mais ainda: a nossa vida é feita de relações com os outros – somos pais, filhos, irmãos, amigos ou inimigos, herdeiros ou herdados, etc. -, mas Esaú decide que as lentilhas (que são uma coisa, não uma pessoa) contam mais para ele do que esses vínculos com os outros que o fazem ser quem é. E então surge uma pergunta: realiza Esaú realmente o que quer ou será a morte que o tem como que hipnotizado, paralisado, mutilando o seu querer?”
(Ética para um Jovem; Fernando Savater; Editorial Presença; pp. 55-56)

Sem comentários: